As iniciativas independentes que surgem na mídia digital enfrentam dificuldades para sobreviver financeiramente. A Énóis surge como exemplo de criatividade e sobrevivência em rede.
Por Rafael Junker Simões
No ano de 2012, a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) publicou um estudo que responde à pergunta “quem é o jornalista brasileiro?”. Embora temporalmente antigo, o estudo ainda permanece como um importante retrato das redações. Alguns dados obtidos revelam uma realidade pouco diversificada de jornalistas em atuação. Em sua maioria, eles são brancos (72%) e originários de universidades particulares (61,2%).
Esses dados indicam um cenário alarmante quando unidos àqueles recém divulgados pela organização Portal Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social. A pesquisa da organização revelou que a propriedade de mais da metade dos 50 veículos de comunicação com maior audiência no Brasil pertence a cinco grupos.
Paul Cheung, presidente da Associação de Jornalistas Ásio-americanos, em uma entrevista concedida ao jornal The Atlantic, afirmou que a “diversidade é crucial para a sobrevivência da mídia. Em 2050, mais de 50% dos americanos serão não brancos”.
A afirmação de Cheung já pode ser percebida na mídia brasileira que ainda é concentrada e com pouco espaço para diversidade. A crise do jornalismo tradicional estabelecido nesta mídia se manifesta nas demissões em massa de profissionais da área. De acordo com o site “A conta dos Passaralhos”, desde 2012, 2123 jornalistas foram demitidos das redações.
Com a necessidade crucial de diversificar e de driblar os modelos tradicionais surgiram as iniciativas independentes, que se apoiam na mídia digital para divulgar conteúdos próprios e muitas vezes produzidos por um público que não têm voz nos grandes veículos de comunicação. Essas iniciativas são ditas independentes porque não possuem vínculos com grandes empresas, sendo então capazes de produzir conteúdos com mais autonomia.
Por não estarem submetidas à lógica de produção do jornalismo tradicional que preza pela rapidez, as iniciativas independentes produzem matérias com maior profundidade. Há mais tempo para a apuração do conteúdo e para o desenvolvimento do texto. A não submissão à lógica tradicional também afeta o estilo do texto que deixa de ser muito expositivo e passa a adquirir um caráter mais narrativo, permitindo ao leitor uma noção mais ampla e complexa do que está sendo relatado.
O cenário brasileiro hoje conta com várias iniciativas com propostas diferentes e produções únicas. Um projeto da “Agência Pública” mapeou algumas iniciativas de jornalismo independente no Brasil e encontrou 79. Em meio a tantas particularidades desses grupos, o elemento “sobrevivência financeira” parece ser um problema que muitos deles compartilham. Alguns recorrem aos financiamentos coletivos e vendem produções, outros acabam trabalhando em projetos paralelos à iniciativa. As alternativas são muitas, mas insuficientes para impedir que alguns grupos acabem com suas atividades.
Com isso, a fórmula para uma iniciativa independente sobreviver e conseguir divulgar suas produções parece ser composta pela união de bons modelos de financiamento e criatividade para atrair leitores. Essa fórmula já foi descoberta e empregada por muitos grupos, sendo um deles o Énóis.
Amanda Rahra, uma das fundadoras do grupo, conta que a ideia surgiu no ano de 2009 quando ela foi a uma entrevista com Dagmar Rivieri, fundadora de uma Organização Não Governamental (ONG) conhecida como Casa do Zezinho.
A ONG de Dagmar, fundada nos anos 70, estava localizada em um bairro da periferia paulistana e atendia jovens em situações de vulnerabilidade extrema. Amanda, que à época trabalhava em uma revista, relata que depois da entrevista ficou “impressionada” com aqueles jovens da ONG e teve a ideia de criar um projeto para eles. Compartilhou sua ideia com a colega jornalista Nina Weingrill e com uma fotógrafa e juntas elas montaram uma oficina para esses jovens.
Desse primeiro projeto, surgiu uma pequena revista chamada “Zzine” em que os jovens atendidos pela oficina abordavam temas dos seus cotidianos na periferia. O sucesso foi tanto que Amanda e Nina pediram demissão de seus empregos e montaram uma oficina de jornalismo chamada “Énóis”.
A “Énóis” conseguiu captar recursos junto à ONG Casa Do Zezinho por meio de um projeto inscrito no Fundo Municipal da Criança e do Adolescente (FUMCAD). Entre os anos de 2011 e 2013, a iniciativa atuou em conjunto com a ONG desenvolvendo oficinas para os jovens da periferia paulistana. Nesses três anos intensos de trabalho, as fundadoras começaram a aperfeiçoar as metodologias de ensino, tendo cada vez mais noção do impacto social do projeto.
No ano de 2014, para alcançar ainda mais público, Amanda e Nina decidiram fundar uma escola de jornalismo online, a primeira do Brasil. Para tanto, conseguiram um financiamento coletivo de R$36 mil por meio da internet. O financiamento coletivo (crowdfunding, em inglês) é um meio para captar recursos no qual pessoas físicas ou jurídicas que queiram apoiar a projeto podem doar dinheiro. Esse mecanismo de arrecadação confere mais liberdade à iniciativa, que conta passa a sobreviver com recursos do público leitor. Isso implica também uma maior participação desse público nas pautas que forem desenvolvidas.
Além da verba, as fundadoras recorreram ao “Fundo Ed”, um fundo americano independente voltado ao desenvolvimento educacional, que concedeu à iniciativa um programador. Dessa forma, montaram a plataforma online que, hoje em dia, conta com cursos que contemplam vídeos documentários, apuração e projetos de intervenção urbana.
A escola de jornalismo forma, anualmente, uma turma de 10 alunos que, a cada 3 meses, produzem uma grande reportagem que será publicada nos veículos parceiros. A escola não possui um corpo docente contratado, contando apenas com dois coordenadores: Tatiana Dias, vinda do Nexo jornal, que lida com as questões da produção jornalística do grupo e Vicente Góes, psicólogo que lida com a formação dos alunos. Amanda Rahra justifica a não contratação de docentes alegando que, na opinião do grupo, os melhores professores são aqueles que estão atuando na área. Assim a escola procura profissionais experientes que se voluntariam para ajudar na grande reportagem que será elaborada pelos alunos.
Em paralelo e muitas vezes em conjunto com a escola, a “Énóis” tem uma agência, que é algo como um “laboratório livre de jornalismo”. Lá são produzidas algumas reportagens que são vendidas aos veículos parceiros como o The Guardian, o data_labe, o Canal Futura, a Agência Pública, a Revista Trip, o Nexo, a Carta Capital, a Galileu, o Huffington Post Brasil e o Uol Tab, no qual é publicada uma pauta por mês.
A “Énois” apresenta um modelo de sobrevivência financeira complexo, arrecadando verbas por meios expressivamente diversos como projetos via lei Rouanet; Programa de Ação Cultural (ProAc) e Imposto sobre circulação de mercadorias e serviço (ICMS); doações de pessoas físicas e jurídicas; catarses nacionais e internacionais, que são plataformas de financiamento coletivo para projetos sociais criativos; venda de livros do projeto “Prato Firmeza”, um guia gastronômico das “quebradas” paulistanas; patrocínios de marcas das áreas corporativas, de marketing e de responsabilidade social; investimentos por parte de fundações internacionais, entre outros modos variados de financiamento.
Essa complexidade do modelo financeiro permite que a iniciativa sobreviva. Porém, representa apenas metade da fórmula, faltando ainda a criatividade para atrair os leitores.
Essa parte que falta, a “Énóis” consegue preencher com produções diversificadas, plurais e elaboradas por jovens, em sua maioria periféricos, com idades entre 16 e 21 anos. Quase todas as reportagens produzidas contam com infográficos e recursos audiovisuais que colaboram com a qualidade do conteúdo. A linguagem é acessível e simples. Mas o ponto principal que valoriza a “Énóis” e permite esta iniciativa alcançar e agradar o seu público leitor são as pautas produzidas: a grande maioria delas remetem à vida na periferia.
Esse ponto é crucial para dar à iniciativa aquela importante diversidade nas redações que, como já revelaram as duas pesquisas citadas no início desta reportagem, é escassa.
Amanda Rahra afirma esperar “que mais jovens possam acessar nos grandes canais esse tipo de reflexão, esse tipo de abordagem, com esse tipo de fonte.” Sobre as fontes, Amanda diz cobrar dos jovens jornalistas da “Énóis” uma maior presença de negros e de mulheres, grupos pouco considerados pelos grandes veículos de comunicação.
Com a abordagem criativa de temas da periferia, o uso de infográficos, recursos audiovisuais, linguagem acessível e a escola de jornalismo, a “Énóis” se mostra um grande exemplo a ser seguido pelas iniciativas independentes, que precisam sobreviver em meio a tantas que encerram atividades e não alcançam o público.
Para finalizar, separamos as 10 principais formas de financiamento do jornalismo independente na web: Doação de pessoas jurídicas, Crowdfunding, Editais, Publicidade, Prestação de serviços, Investimento próprio, Fundações, Eventos, Prêmios, Assinaturas.
Revisão: Camila Gabrielle e João Guilherme